POR
PATRICIA LOURENÇO DE BESSA
Esse tópico foi escrito a partir de informações obtidas em
pesquisa in loco, tendo em vista que a comunidade tem sua história contada por
meio da vivência e experiência pessoais da autora na comunidade Pé de Serra. As
fotografias de paisagens, arquitetura e os mapas temáticos reforçam suas
constatações sobre o papel da cultura na construção de territórios e
territorialidades. A comunidade ou sítio Pé de Serra está localizado na zona
rural da cidade de Doutor Severiano-RN e surgiu em razão dos empenhos de
Vicente Correia de Bessa. Desse modo, é preciso compreender como se deu o
processo de territorialização da cidade de Doutor Severiano para adentrar no
povoamento da comunidade estudada.
Em meados do século XVIII, o território do hoje município de
Doutor Severiano começou a ser ocupado pelos colonos Domingos Lopes Barbalho e
os irmãos Caetano de Barros Bezerra e Estevão Álvares Bezerra. Nessa ocasião,
recebeu a denominação de “Mundo Novo”. Com a ocupação das terras, a economia
local, cuja base era a agricultura, foi se desenvolvendo lenta e gradativamente
(Prefeitura Municipal de Doutor Severiano, 2023).
O processo de povoamento foi igualmente lento, se o
compararmos com outras vilas e cidades coloniais localizadas na costa
atlântica, nas regiões de mineração e nos sertões do gado. Até meados da década
de 1940, não havia fora de Mundo Novo qualquer aglomerado humano que pudesse
formar uma povoação (Prefeitura Municipal de Doutor Severiano, 2023)
Na década de 1950, Mundo Novo era uma localidade pertencente
ao município de São Miguel. Entretanto, em 1953, a localidade recebeu o status
de distrito, o que acarretou na mudança toponímica para Doutor Severiano. Em 10
de maio de 1962, por meio da lei estadual nº 2784, Doutor Severiano emancipa-se
como cidade, e seu território é desanexado do de São Miguel. A partir de então
seus povoados rurais foram surgindo e crescendo (Idem).
De acordo com uma pesquisa in loco, a família Correia foi a
primeira a habitar a localidade de Pé de Serra, que atualmente possui uma
população com cerca de 200 habitantes e 90 moradas. Entretanto, algumas dessas
residências, inclusive mais antigas, não possuem moradores, e por isso não
foram mapeadas. Além disso, o topônimo original da comunidade - “Pé de Serra
dos Correias” – é um panegírico aos primeiros ocupantes e à paisagem orográfica
da região. O sítio está localizado no “pé de um morro”, ou seja, um lugar
situado nas bases de um promontório escolhido para implantar as edificações.
Baseando-se nas histórias de antepassados, sabe-se que, por
volta dos anos de 1895 e 1900, no local onde hoje temos o açude principal de Pé
de Serra havia o “pedregal” (Figura 14) e (Figura 15). Esse lugar localiza-se
logo abaixo da parede do açude, sendo caracterizado por muitas pedras e
existência de água. Ali, as mulheres lavavam roupas e os homens carregavam água
em animais para abastecer suas casas
De fato, o pedregal é um lugar de memória6 , apesar de tomado
pelas águas do grande açude quando trasborda no período chuvoso. Esses aspectos
naturais relatados, demonstram que os primeiros habitantes escolheram esse
lugar para morar, dada a existência de água e da vida que essas terras
oferecem.
O perfil dos moradores da comunidade de Pé de Serra é
caracterizado pela presença marcante de mulheres, principalmente idosas
benzedeiras, senhores repentistas e jovens cordelistas, os quais, apesar do
anonimato e sigilo de nomes nessa pesquisa, se destacam nas escolas do
município pela criatividade e inteligência, ouvem cantoria, na brincadeira
cotidiana criam versos improvisados ressignificam a poética do território por
meio da cultura e da materialização da memória em sua arquitetura residencial e
apreensão sensível da paisagem.
Conforme informações coletadas no site da prefeitura
municipal de Doutor Severiano (2023), desde o surgimento até o tempo presente,
as principais atividades econômicas da comunidade são a agricultura, a pecuária
e o comércio familiar. Em termos de cultivo, plantava-se arroz, feijão e milho.
Outras pessoas cultivavam algodão, sendo hoje inoperante em razão de pragas
sucessivas. O Pé de Serra passou por períodos de estiagem. Em meio às
adversidades da seca, a comunidade elaborava poços artesianos conhecidos com
“cacimbão” e “cacimbas”. Entre 1999 e 2000, foi concluída a construção do
açude, amenizando os problemas de abastecimento de água acumulados
historicamente.
A infraestrutura conta com iluminação elétrica introduzida na
comunidade em 1988, substituindo a iluminação de lamparina e lampião. Até 2020,
o ex-prefeito, Francisco Neri de Oliveira, aprovou o projeto de pavimentação
das estradas com calçamento de paralelepípedo de pedra granítica. A comunidade
está dividida em cinco áreas: Pé de Serra central, Alto, Pé de Serra de baixo,
Pé de Serra de cima e os Ribeiros,
As edificações mais importantes eram duas escolas construídas
no final dos anos 1980 que, embora no ano vigente estejam fechadas, foram
fundadas por Waldir Pires o prefeito que atuava nessa época. O Pé de Serra
possuía a Escola Municipal Miguel Ribeiro Machado, fundada no ano de 1989, e
uma outra instituição nomeada de Escola Municipal Lupicínio Correia de Bessa,
fundada no ano de 1987. Outros equipamentos existiam naquela paisagem, como o
posto de saúde José Ribeiro Campos construído, em 1990, na gestão do prefeito
Joca Pires.
As escolas Miguel Ribeiro Campos e Lupicínio Correia foram
fechadas. Por esse motivo, o sítio permaneceu sem escolas durante muito tempo.
Quem quisesse estudar, precisaria se deslocar a outros distritos de Doutor
Severiano-RN. Contudo, os esforços políticos e sociais de dois jovens
residentes, com o apoio comunitário, possibilitaram o retorno, em 2023, de uma
escola de ensino EJA (Educação para Jovens e Adultos). Essa edificação já foi o
antigo posto de saúde da comunidade, mas ganhou novo uso escolar depois de
passar por uma pequena reforma.
Desde sempre, os moradores se empenharam politicamente com
vistas a trazer novamente o ensino para as pessoas que não puderam usufruir
desse direito na infância e adolescência. Na Figura 24 e na Figura 25,
observa-se a arquitetura da escola de Pé de Serra: volumetria de base
retangular, telhado de telha cerâmica com duas águas, uma pequena varanda
vedada com portão metálico de ornamentação variada. Trata-se de uma edificação
adjunta à escola Sebastião Leite da comunidade vizinha “Sítio Merejo”.
A principal fonte de acesso à informação na comunidade se
dava mediante rádio e, posteriormente, televisão. O primeiro aparelho
televisivo foi adquirido, em 1990. A dona do aparelho disponibilizava o uso da
TV para os moradores locais, tornando o evento um momento de sociabilização.
Esses registros do cotidiano são contados pelo povo que viveu tais
experiências. Dado os custos da fotografia, essa mídia era utilizada em situações
específicas por um pequeno número de vizinhos, mas isso não anula a transmissão
da memória social, individual e paisagística de Pé de Serra. Ao contrário, a
história oral se converteu num mecanismo no qual se mantém viva a cultura e as
recordações.
Outro marco arquitetônico que modela a paisagem é a
arquitetura sacra. A capela local, dedicada ao orago São José, é a obra mais
recente e continua passando por reformas feitas pelos próprios moradores. A
primeira festa foi celebrada, em março de 2013, de forma campal no terreno onde
seria erguida a arquitetura sagrada. A construção de fato principiou em agosto
do mesmo ano, com a introdução da pedra fundamental no dia 29 do mesmo mês.
Além disso, a celebração da primeira missa ocorreu em dia 26 de junho de 2016.
A capela de São José é produto da ação e criatividade do
lugar. No frontão escalonado da fachada encontramos a torre sineira, as
aberturas e a porta de entrada. Sua planta apresenta uma única nave, cujo
acesso se dá pela porta principal, bem como por acessos laterais. Desde então,
esse patrimônio se converteu em objeto de afeto e simbólico, pois representa a
fé materializada na construção da memória. A representação abaixo (Figura 29)
indica a linha do tempo do processo de povoamento e construção da paisagem do
sítio, com os principais dados históricos apresentados de forma ilustrativa.
Outro marco da cultura imaterial do Pé de Serra é a festa de
São José. Festeja-se o santo, entre 09 e 19 de março, na capela da comunidade.
Nessa ocasião, narra-se a história do sítio, mostrando a importância do
território e da territorialidade pautados na agricultura, na fé, cultura e na
paisagem. As celebrações de 2025 terão como tema “A esperança não decepciona”,
sendo representada na gravura elaborada por Gabriela Zanom (2025), artista
natural da cidade vizinha de São Miguel-RN.
A procissão de São José acontece sempre no último dia do
festejo, com uma caminhada dos devotos pelo lugar. O trajeto inicia no lugar
chamado de “Pé de Serra de Baixo” e finaliza na ermida. A procissão é evento
performático em que voz, corpo, paisagem e território se entrelaçam num todo
harmonioso: devotas e devotos cantam, rezam, movimentam-se e celebram a memória
do lugar e a imagem do padroeiro coberto de rosas. Uma missa é rezada após procissão
e, em seguida, um leilão encerra a festividade.
A capela foi construída para consolidar as crenças em
território santo. Ali são realizadas anualmente, no mês de março, as festas de
São José, orago homenageado devido a preces feitas pelas famílias a fim de
alcançar a graça da chuva que irriga a terra e propicia a plantação de milho e
feijão. É comum encontramos essa tradição de rezar por chuvas em outras
povoações e cidades dos sertões do Nordeste brasileiro. Conta a história oral
que, se no dia 19 de março chover, haverá bom “inverno”; o contrário também se
apl
A primeira casa erguida na localidade pertencia à família do
senhor Vicente Correia, sendo executada em taipa de mão (o barro era o material
utilizado para a vedação dos tramos formados pela estrutura de madeira). Essa
técnica prevaleceu por longas datas na comunidade; porém, foi substituída por
edificações estruturadas com técnicas atuais de alvenaria de tijolo. Permanecem
a ornamentação simples (ou fachadas desprovidas de decoração) e os telhados de
duas e quatro águas com telhas cerâmicas.12
A maioria utiliza alvenaria de tijolo maciço fabricado pela
própria comunidade a partir da construção de caieiras, isto é, locais de queima
artesanal dos blocos de tijolo. Não há registros contemporâneos dos lugares
onde existiam as caeiras, mas os vestígios arqueológicos dessa prática
encontram-se no saber da produção e tecnologia do tijolo queimado. Embora não
existam mais de forma material, as caieiras estão na memória das pessoas e
fazem parte da paisagem cultural do lugar.



Nenhum comentário:
Postar um comentário